sábado, 29 de novembro de 2008

Abaixo o romantismo educacional


"Nota do editor - Fazer uma mídia sustentável significa, na maior parte das vezes, colocar o dedo na ferida em temas muito polêmicos. Reconhecer que os seres humanos tem os mesmos direitos é uma coisa, querer que sejam iguais é outra muito diferente. O artigo de Martha San Juan França publicado abaixo, sobre o livro de Charles Murray é um desafio à reflexão e ao debate não apenas sobre o sistema educacional dos Estados Unidos, mas de todo o mundo".

Por Martha San Juan França, para o Valor, de São Paulo

Nos anos 90, o cientista político americano Charles Murray causou furor ao lançar o livro "The Bell Curve - Intelligence and Class Structure in American Life" ("A Curva do Sino"), em parceria com o psicólogo e professor de Harvard Richard Hermstein. Na obra, eles sustentam que a inteligência medida por testes de QI (coeficiente de inteligência) é um fator preditivo três vezes melhor do que as condições sociais ou a educação para indicar o desempenho no trabalho, a renda e até as chances de gravidez fora do casamento de determinados grupos.
Bloomberg
O Harvard College em Cambridge, Massachusetts: "É um mito afirmar que todos podem alcançar e ultrapassar seu potencial máximo de inteligência", afirma Charles Murray

Agora, Murray reforça a sua tese sob outro ângulo. Em seu novo livro: "Real Education: Four Simple Truths for Bringing America's Schools Back to Reality" (Educação Real: Quatro Verdades Simples para Trazer as Escolas Americanas de Volta à Realidade), ele afirma que não há necessidade - e se trata até de desperdício - de obrigar todos os estudantes a cursar uma faculdade. Seu argumento se baseia nos dados das avaliações educacionais, que demonstram que 80% dos jovens estão abaixo da média de competência cognitiva necessária para lidar com o rigor do ensino universitário, que, por definição, obriga a refletir sobre questões intelectualmente complexas.

"Vamos ser realistas", diz Murray. "O diploma normalmente comprova que a pessoa teve uma educação liberal clássica. Significa que tem condições de ler e entender textos difíceis. Mas centenas de jovens nunca conseguirão ler e entender, por exemplo, 'A Ética' de Aristóteles. O resultado é que temos faculdades que oferecem cursos fracos, aumentam as notas e fingem que os seus alunos estão fazendo atividades de nível universitário quando, de fato, não estão. De todas as contribuições que meu livro pode trazer, a que mais me agradaria ver seria o reconhecimento da fraude que o diploma representa."

Bloomberg
Formandos de MBA da Harvard: situação financeira global é um bom exemplo do desajuste entre novas tecnologias da informação e a habilidade cognitiva necessária para saber usá-las, aponta especialista
Murray falou ao Valor antes de viajar pela primeira vez ao Brasil, onde participou de seminário organizado pelo programa de pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento Humano da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para ele, uma das "grandes falácias da sociedade americana" é o que qualifica de "romantismo educacional" ou a insistência de que "toda criança pode aprender quase tudo se tiver professores e ambiente adequados". "É impossível educar todos do mesmo modo, assim como é um mito afirmar que todos podem alcançar e ultrapassar seu potencial máximo de inteligência. Apenas um número limitado de pessoas está apto a realizar tarefas que exigem capacidade geral para raciocinar, resolver problemas e aprender. Defendo a idéia de que todas as pessoas devem ter algum tipo de treinamento depois do segundo grau, mas a universidade é um modo pouco eficiente de ir atrás dos ensinamentos práticos necessários em ocupações menos exigentes do ponto de vista cognitivo", afirma.

Em outras palavras, Murray prega uma mudança de objetivo dos jovens. "Vamos acabar com esse mito de que a carreira universitária é tudo e de tratar o diploma como um símbolo de status", explica. "O objetivo de quem está nessa fase da vida é atingir a maturidade, tendo descoberto algo que gosta de fazer e considera satisfatório. Se esse algo é física nuclear, então é preciso ir para a universidade porque é lá que está a oportunidade. Se o objetivo é ser um chef de cozinha, um comerciante ou uma auxiliar de enfermagem, então o caminho é fazer alguns cursos práticos antes de começar a trabalhar."

Para o cientista político, a sociedade transformou o diploma em um sinal de competência profissional e atualmente quem não tem o título universitário é discriminado na hora de conseguir emprego. Mas não deveria ser assim. "Exceto no caso de algumas profissões específicas, como engenharia ou medicina, o diploma não dá garantia nenhuma de competência profissional. Representa apenas um pré-requisito sem custo [para o empregador] de perseverança e certo grau de inteligência. Mas trata-se de um requisito muito pobre em termos de informação. Melhor seria substituí-lo por testes vocacionais específicos."

A polêmica do QI

De muitas maneiras, o novo livro de Murray amplia aquilo que já vinha falando desde os tempos do lançamento de "A Curva do Sino". Na época, ele chamava a atenção para o fato de que as pessoas mais inteligentes, que batizou de "elite cognitiva", estavam se isolando em termos competitivos do restante da população e isso contribuía para a desigualdade econômica e social. Essas afirmações provocaram uma avalanche de críticas, sobretudo porque em dois capítulos Murray afirmava, baseado em dados estatísticos, que os negros americanos têm em média um QI mais baixo do que o de outros grupos sociais, como brancos, judeus, asiáticos. Estes últimos, também segundo os dados de Murray, têm melhor desempenho que os brancos. Na época, foi chamado de racista e sua foto chegou a ser colocada ao lado da de Hitler em um telejornal.

Nada muito diferente do que ocorreu recentemente, quando o Prêmio Nobel James Watson, co-descobridor da estrutura do DNA, caiu em desgraça ao dar uma entrevista ao jornal "Sunday Times", em que se dizia "pessimista" sobre o futuro da África, pois as políticas sociais para o continente eram baseadas no fato de que a inteligência dos negros é igual à dos brancos, "apesar de todos os testes dizerem que não". Ou quando o reitor da Universidade de Harvard, Lawrence Summers, acabou perdendo o posto ao dizer que havia explicações biológicas para o fato de existirem poucas mulheres na elite científica.

Por trás dessas afirmações está a sempre explosiva questão do "fator G", ou seja, a medida da inteligência geral que se deve à predisposição genética e, portanto, não depende unicamente do grau de treinamento ou da escolaridade da pessoa avaliada. A partir dessa variável, geralmente aceita por todos os pesquisadores, discute-se se a inteligência é uma habilidade única, aplicável a muitos cenários, ou se representa a soma de habilidades específicas, que a pessoa pode ou não possuir independentemente. O debate estende-se também à questão de como a inteligência, medida pelos testes de QI, se traduz no desempenho diário ou na evolução acadêmica.

Para especialistas como Murray, os testes de QI e outros que medem a capacidade cognitiva dão uma boa idéia da inteligência de grupos, etnias ou gênero. Daí suas afirmações mais polêmicas. Mas ele insiste que é importante entender que os dados são aplicados a médias de populações e não podem ser extrapolados para indivíduos em particular. Sua preocupação se refere a políticas sociais e à excessiva ênfase, aplicada em seu país, à educação igual para todos, que, em sua opinião, nivela por baixo.

"As evidências científicas comprovam que a educação não pode, por si só, ser responsável pelas desigualdades intelectuais, sociais e econômicas", confirma José Aparecido da Silva, professor do Departamento de Psicologia e Educação da unidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). "Dizer que crimes, drogas, desemprego, filhos ilegítimos, pobreza são frutos, simplesmente, do baixo nível escolar, é o que mais grassa nos discursos político-econômicos e educacionais."

José Aparecido concorda com Murray: "No Brasil, é difícil falar sobre essas questões porque temos problemas mais urgentes relacionados a má nutrição, desagregação familiar, escolas inadequadas, etc. Mas uma consulta aos dados publicados nas avaliações educacionais - nacionais e internacionais - permite, de imediato, inferir que metade das crianças está abaixo da média de competência cognitiva, ou seja, abaixo da média de distribuição de índices de inteligência que servem de parâmetro, o que, por conseqüência, limita severamente seu desempenho escolar. E mesmo o sistema educacional mais perfeito pouca diferença faz no desempenho desses estudantes."

Segundo o pesquisador brasileiro, "é preciso substituir a ré educação pela ré inteligência. E tal substituição, semelhante a outros dardos que ferem o âmago do ego humano, é de difícil aceitação e muitas vezes constitui uma questão perigosa sobre a qual podemos apenas ouvir falar e nunca investigar sistematicamente".

Qualificação por baixo

Sendo um dos acadêmicos do conservador American Enterprise Institute, em Washington, Murray está preocupado com a qualificação por baixo. Ele acredita que os numerosos programas governamentais americanos, especialmente a ação afirmativa que estabelece o sistema de cotas para negros, representa uma forma de discriminação contra os mais capazes que não são necessariamente brancos. Mais preocupante, segundo ele, é o fato de que a sociedade tecnológica requer o aproveitamento dos mais inteligentes para seguir evoluindo.

"Não tenho nada contra o fato de investir dinheiro naqueles em desvantagem acadêmica, desde que tenha resultado. Mas isso não está acontecendo e, o que é pior, estamos negligenciando o tipo de educação que pode fazer diferença, como ensinar a ganhar a vida a despeito dessa desvantagem. Além disso, negligenciar os mais talentosos é moralmente tão ruinoso quanto criar programas que não beneficiam aqueles menos inteligentes", diz.

Um dos primeiros pesquisadores a tentar estabelecer modelos para compreender as diferenças na inteligência das pessoas, o psicólogo Earl Hunt, professor emérito da Universidade de Washington, concorda que não é uma boa idéia levar mais do que 50% dos estudantes à universidade. Segundo ele, desde que o ambiente de aprendizado seja adequado, todo mundo consegue aprender o básico no primeiro grau e não há necessidade de separar classes. "As coisas são diferentes quando os estudantes vão para o segundo grau", contrapõe. "A partir daí, eu acredito em classes especiais para os mais inteligentes."

Hunt, que também esteve no seminário promovido pela UFMG, é um dos consultores do projeto Study of the Latin American Intelligence (Slatint), ainda em andamento, que estuda amostras de jovens adolescentes latino-americanos com idade entre 14 e 15 anos para identificar o peso das habilidades específicas que carregam no fator G. O grupo de Carmen Flores-Mendoza levanta a hipótese de haver diferenças entre as culturas no peso dessas habilidades. "Por exemplo, o raciocínio matemático pode ter um peso maior no fator G na cultura asiática, enquanto o raciocínio verbal predomina nas culturas latinas", afirma. "É uma hipótese ainda não verificada em nível internacional e cuja resposta deverá auxiliar na política educacional latino-americana."

Autor do livro clássico "Will We Be Smart Enough?" (Seremos Espertos o Suficiente?), de 1995, Earl Hunt utiliza a teoria cognitiva aliada a projeções demográficas e pesquisas psicométricas para medir a capacidade da força de trabalho atual de responder aos desafios representados pelas novas tecnologias de informação. Em entrevista ao Valor, ele disse que a situação financeira global é um bom exemplo do desajustamento entre essas novas tecnologias e a habilidade cognitiva necessária para saber usá-las. "Parte da crise ocorreu porque o setor financeiro passou por uma série de inovações, ampliação de mercado, avanço tecnológico e integração global que ocorreram de forma muito rápida", observou. "O resultado é que poucas pessoas entenderam os riscos que estavam sendo criados."

Segundo Hunt, a preocupação com os efeitos da mudança de tecnologia é antiga. "Sócrates já dizia que a invenção da escrita levava à deterioração da memória", exemplifica. "Os religiosos do século XV acusavam a imprensa de ser perniciosa para a sociedade, na medida em que levava mais pessoas a ler e interpretar a 'Bíblia' sem a ajuda da igreja. Atualmente, as pessoas se perguntam se o Google está nos tornando mais estúpidos. Acho que em todas as épocas as pessoas reagem às novas tecnologias. Ler e imprimir mudam o modo como as pessoas pensam... e também o Google. O desafio da educação é ensinar a refletir sobre essas mudanças."

Nenhum comentário: