segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A mensagem está no método, não no meio: uma revolução fora do papel

Por Sérgio Abranches

O jornalismo está passando por uma revolução e, vejam só, nenhuma surpresa, ele está informando sobre ela. Onde quer que eu vá para discutir mudança no século XX, tropeço com a mesma idéia. Todas as disciplinas e todas as profissões estão cheias de pessoas vendo uma revolução em processo – eu disse em processo – não que se prenuncia.

Ela está apenas começando, em seu estágio primitivo, mas já produziu mudança suficiente para nos maravilharmos com as novas possibilidades que ela abre; nos assustarmos com os riscos e questões éticas que ela levanta; e ficarmos perplexos com as incertezas à frente. Há alguns determinantes comuns a toda essa movimentação: saltos na tecnologia digital e de computação; emergência de novas mídias e convergência das mídias; novos campos científicos, novo conhecimento e novos recursos por toda parte.



Eu estava zapeando na TV, quando parei numa entrevista da Márcia Peltier com o neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho, provavelmente um dos mais proeminentes em seu campo na América Latina. Conheço o Paulo pessoalmente e é uma grande figura. Ele falava que a medicina em geral, e sua especialidade, em particular, estão sendo revolucionadas por novas descobertas científicas e tecnológicas. Ele tentava passar a idéia de que estava falando sobre revolução, não mudança incremental, ou mesmo mudança rápida. Ele não falava de avanços ou aperfeiçoamentos em uma determinada prática, modelo ou paradigma. Ele falava sobre uma transformação total, mudança radical, ruptura de paradigma. “Tão radical como quando a moderna medicina ocidental nasceu do desenvolvimento da anatomia”, disse.

Três áreas de progresso científico e tecnológico estão dirigindo essa revolução: genômica e a possibilidade de redesenho terapêutico dos genes; pesquisa com células-tronco embrionárias e a perspectiva de terapia celular; e nanotecnologia, como caminho para cirurgias e tratamentos não-invasivos, particularmente na neurologia. Alguns saltos já fizeram enorme diferença. Ele mencionou, como exemplo, o extraordinário avanço no diagnóstico e no tratamento propiciado com a substituição da radiografia pela imagem por ressonância magnética. Claro, a tecnologia digital e de computação são parte dessa revolução também.

Soa familiar para aqueles que estão debatendo o futuro do jornalismo? Com certeza. Estamos tentando surfar uma gigantesca onda de mudanças. Uma revolução, que está transformando o negócio, a tecnologia, a economia, a profissão, a prática, a ética e a pauta do jornalismo. Nem um só tijolo de todo o edifício do jornalismo construído ao longo do século XX ficará intocado. Obviamente, os céticos podem sempre dizer que a tese da revolução é só uma justificativa para não enfrentar o trauma que a morte do jornalismo poderia causar. Talvez. Então, o jornalismo morreu. Tudo bem. Vida longa para o jornalismo.

Essa é uma forma para lá de esquisita de morrer: relatando o próprio passamento e ainda falando da vida post-mortem. Ou nos movemos para o mundo místico, ou isso é o jornalismo no seu melhor momento, com todo o cinismo, ceticismo, controvérsia e agitação típicos da cultura da redação. Olhando para o que está acontecendo e tentando entender aonde todo esse tumulto vai dar: isso é o que jornalistas fazem. Porque é uma disrupção, não uma atualização, como disse com precisão Clay Shirky. Essa mudança revolucionária, não é causada apenas pela tecnologia e novos recursos de rede social na web. Nem acontece apenas no jornalismo.

O aquecimento global, um macro-fator de mudança no século XXI está determinando a aceleração e reorientação de prioridades e investimentos em ciência e tecnologia; está reformulando a prática médica, por meio de pandemias, dos efeitos de ondas de calor e frio; ou os negócios, abrindo novas avenidas para investimento, fechando rotas tradicionais de ganhar dinheiro; ou o jornalismo, redefinindo o modo pelo qual se deve procurar a conexão com a mudança climática em toda cobertura; e a lista vai adiante, alcançando todas as práticas relevantes que se possa imaginar.

Steve Yelvington diz, acertadamente, que

“a tecnologia está operando profundas transformações no jeito com que as pessoas descobrem e chegam a entender eventos públicos. O processamento social dessa informação está se mudando da sala de jantar e da mesa de refeições para as redes. O poder da informação está se deslocando dos centros e instituições, para as franjas e para os indivíduos”.

A tecnologia, tanto quanto o aquecimento global são tendências firmes do século XXI com as quais jornalismo terá que lidar e às quais terá que se adaptar, encontrando novos modos de continuar cobrindo os acontecimentos e se financiando.

Como diz Yelvington,

“no contexto dessa mudança, um jornalista ou um executivo da imprensa que persista operando como se ele vivesse no século XX é culpado de falhar na busca de cumprir com suas obrigações morais, ou financeiras, com seu público, ou com seus investidores”.

Os jornais, contudo,

“continuam a produzir um produto com o mesmo formato geral e o mesmo conjunto de ingredientes de uma década ou, mesmo, de uma geração atrás”.

A atitude em relação a esse ambiente em rápida mutação tem sido reativa e não inovadora. Quanto tempo o jornalismo ainda levará para se recriar como uma profissão e como um negócio é uma questão aberta, que aceita múltiplas respostas contrastantes e o jornalismo mal começou a respondê-la.

Minha impressão é que os jornalistas, individualmente, como profissionais, estão se movendo mais rapidamente, explorando a web para obter informação, usando as redes sociais para disseminar notícias e opiniões, para ampliar o diálogo entre eles mesmos e com outros profissionais no ramo de buscar e divulgar informação, especialmente os blogueiros. Os jornais têm sido bem menos habilidosos na travessia das trilhas por essas novas veredas digitais.

Yelvington argumenta que

“encontrar essas respostas será um processo confuso, envolverá fracassos e, para muitos, grande sacrifício pessoal. Para os milhares de jornalistas, operadores gráficos, motoristas e outros cuja vida será virada de ponta cabeça”.

A sobrevivência dependerá da eficiência com que “descobrirão novas formas de exercer papéis de valor social”. Para os jornalistas, o desafio é “se adaptar a um mundo no qual compartilham o poder da informação com ativistas, empresários, e pessoas antigamente conhecidas como a audiência” e muitos estão não apenas se adaptando, mas reportando e debatendo o que está acontecendo nesse caminho, os experimentos em curso, os fracassos, as descobertas.

Steven Johnson tem uma visão semelhante e sua conclusão pode servir como visão geral desse tema:

“quaisquer sejam as causas subjacentes (…) o negócio da imprensa – e portanto seu produto editorial – será completamente diferente daqui a cinco ou dez anos (…) Eu penso que há boas razões para acreditar que o sistema de imprensa que está evoluindo online será de fato um modelo de jornal melhor do que este com o qual temos vivido pelo último século”.

Então, a imprensa que está evoluindo online não está realmente matando o jornalismo, e pode mesmo ser apenas uma de suas novas configurações. E os blogs? São uma imitação espúria de jornalismo, uma forma amadora e irresponsável de espalhar rumor, fofoca, fato sem confirmação, opinião vazia e outros conteúdos virulentos e corrompidos? Tem disso aí pela Web.

Mas, o professor da escola de jornalismo da New York University e blogueiro Jay Rosen (@jayrosen_nyu ), tem um forte argumento para negar essa visão negativa do blog:

“bons ‘bloggers’ constroem confiança com uma base de usuários online e, ao longo do tempo, as práticas que levam confiança para a plataforma onde os usuários realmente estão… são sua ética, suas regras”.

E ele vai além:

“aqueles no jornalismo que querem trazer ética para o blog têm que começar pelo que faz as pessoas confiarem em (alguns) blogueiros, não com um figurino (template) ético feito para uma plataforma anterior que operava como um sistema fechado, em um mundo de um-para-muitos. É o que digo: se os blogueiros não tivessem ética, o blog teria fracassado. E é claro que ele não fracassou”.

Jornalistas blogueiros estão se tornando uma presença de larga escala globalmente. Alguns deles se tornaram fontes obrigatórias de informação, opinião fundamentada e informação especializada em determinados temas no mundo todo.

Steve Johnson nos diz que ele obtém informação muito mais útil desse novo ecossistema, do que ele conseguia retirar apenas da imprensa tradicional 15 anos atrás. Mas, alerta, “eu sou um navegador muito experiente da infovia”. Há muitos instrumentos de navegação para ajudar qualquer um a navegar por esse bravo novo mundo da informação online: RSS, robôs, buscadores, Twitter e outros recursos de rede social. Dominá-los com habilidade é tão importante quanto entender os novos princípios da navegação.

Johnson observa, corretamente, que hoje há “mais perspectivas, maior profundidade e mais superfície”. Nada está maduro. No futuro, ele aposta, haverá “mais conteúdo, não menos; mais informação, mais análise, mais precisão e um espectro mais amplo de nichos que terão cobertura”. Eu não apostaria contra ele. Esse aumento quantitativo e qualitativo de conteúdo já está aí, para qualquer um ver, em todas as línguas e em praticamente todos os temas.

O que fazer a respeito disso? Surfar alto as ondas da mudança. Cobrir a mutação. Principalmente, refletir sobre ela, discutí-la com a audiência que se transformou em uma comunidade muito ativa. Por ela a informação flui, dos cérebros e mãos tanto de profissionais, quanto de amadores avançados e não é mais consumida passivamente, mas discutida, reprocessada e frequentemente reciclada e reintroduzida no infofluxo. A matéria jornalística é uma parte fundamental desse fluxo. Shirky nos lembra o ponto preciso do sociólogo Paul Starr de que o jornalismo não é apenas descobrir fatos e formatar notícias.

“Diz respeito, também, a formar um público para ler e reagir a suas matérias. Para um programa de TV, com uma audiência de um milhão, ninguém se importa se é o mesmo milhão toda semana, o que manda é o número de telespectadores. Um público, por contraste, é um grupo de pessoas que não apenas sabe coisas, mas conhece outros membros que também sabem coisas”. Uma comunidade e, para essa comunidade, o “jornalismo é sobre a criação de uma consciência compartilhada”.

O jornalismo é tanto um instrumento da notícia, quanto é um recurso da comunidade e à medida que tanto a fisionomia social dessa comunidade e seu ambiente mudam radicalmente, ele tem que se recriar, mantendo as regras sólidas da profissão das quais retira sua credibilidade e confiança, e adaptando algumas das velhas regras aos novos modos. A notícia precisa continuar a fluir.

Na extraordinária novela de ficção científica de Frank Herbert, Duna, a “especiaria” é a chave de todo o sistema econômico, social e político. Uma frase é repetida, como um mantra, pelo narrador e por vários personagens: “a especiaria tem que fluir”. É isso aí: a notícia tem que fluir. O jornalismo não pode morrer porque ele é, como os vermes gigantes que processam a água no deserto de Duna para produzir a especiaria, vital para que o sistema continue a evoluir, para que atravesse as turbulências. O jornalismo processa informação hoje de mais fontes, de formas ainda mais complexas, para produzir e entregar suas matérias a uma comunidade consumidora ampliada. De sua vitalidade depende o fluxo de notícias que permite ao sistema societário, físico e online, continuar fazendo sentido de si mesmo.

Então, isso é a morte do jornalismo como o conhecemos, ou seu penoso renascimento no novo infomundo? Ao fim e ao cabo, não importa muito. Ele estará entre nós por mais tempo que conseguimos enxergar. É claro que há uma equação econômica – particularmente no EUA e na Inglaterra – que se mostra muito difícil de resolver para manter o negócio da imprensa e pagar os jornalistas por seu trabalho. Ela ainda tem muitas incógnitas. Então, é preciso continuar olhando criticamente as experiências e soluções tentativas, que as organizações de imprensa estão testando.

Bem vindos à revolução e, cuidado, as revoluções tendem a devorar muitos revolucionários que se perdem dela. Uma coisa é certa, ao final, o resultado desses ciclos dentro de ciclos de mudanças será muito diferente de tudo que imaginamos e desejamos.


(Envolverde/Ecopolítica)